#01: Ter sido a criança mais velha do mundo: O peso de ter criado morada para escapar da tempestade sozinha, mesmo com uma casa cheia.
Para todos que procuram casa, mesmo estando deitados no sofá da sala. Eu os abrigo vivenda.
Dedico esta carta a todos que aprenderam a construir muros antes mesmo de entenderem como erguer castelos, que cresceram carregando pesos que não deveriam ser seus, em silêncio, enquanto a cabeça fazia uma orquestra barulhenta. Não porque quiseram abrir mão da infância, mas porque o peso das responsabilidades exigiu que deixassem seus brinquedos para trás antes do tempo. É para você, que carrega no peito uma criança adulta. Eu os entendo.
Crianças que vêm de um lar disfuncional não têm grandes sonhos, elas apenas querem ter uma casa;
Muitas pessoas já me perguntaram quando percebi que minha infância tinha ido embora, mas como posso responder se, na verdade, acredito que nunca fui completamente criança? Aprendi muito nova (ou velha, diria) a ser silêncio. Dentro de casa, já não havia espaço para o meu barulho, não cabia novos problemas; assim, não chamar atenção era o que me fazia receber validação dos meus pais. Não me lembro do que passava pela minha cabeça naquela época. Talvez acreditasse que, assim, a tempestade seria menos turbulenta. Creio que sim. O que, indubitavelmente, não é julgável: era a única maneira de sobreviver. Ser “a filha que nunca dava trabalho” era uma forma de ser vista. Eles me olhavam. Eles não me viam.
Ser mãe aos 6 anos não era como brincar de casinha parecia;
Meu irmão cresceu em meus braços. Ser "irmã" era apenas título no papel. Meus pais lutavam para me dar tudo do bom e do melhor, mas o preço disso foi a ausência. O trabalho havia se tornado o filho preferido. A casa era sempre cheia, mas raramente com a presença deles, tanto fisicamente quanto psicologicamente. O silêncio deles me ensinou que crescer não esperaria a infância viver. Era uma responsabilidade que não me foi permitida. Eu inventava histórias para ele dormir e tentava ser o colo que eu mesma precisava. Ser mãe aos 6 não significava brincar com panelinhas ou construir casas de lençol. Significava educar. Significava correr para cessar brigas antes que terminassem do jeito errado. Significava tentar ensinar o que eu mesma não sabia, enquanto o tempo corria rápido demais para meus pés pequenos acompanharem. Ainda me pergunto: eles sabiam que eu também era apenas uma criança?
Pacificadora do casamento;
As vozes sempre se erguiam no finalzinho do dia. Gritos. Xingamentos. Era o som da minha infância. Eu, ainda pequena, me via na posição de mediadora. Não porque queria, mas porque precisava. Me colocava entre as brigas e os separava. Era uma habilidade que aprendi rápido: apagar incêndios antes que virassem labaredas. Mas, no fundo, o que eu realmente queria era que alguém me dissesse que não era meu papel ser a pacificadora, a dona do Prêmio Nobel da Paz.
Como tudo se reflete no futuro;
Aos poucos, percebi que a infância que não vivi continuava a me visitar de outras formas. Como se sempre houvesse uma lacuna. Por exemplo, confesso que demorei para entender que nem todo mundo aprende a amar em meio a tempestades. Para mim, sempre parecia faltar algo nos meus relacionamentos. Tudo era calmo, estável, mas havia ali uma sensação sem nome. Como se a paz fosse estranha. Como se tivesse algo errado. Como se eu não estivesse acostumada a ela (e acredito que nunca estive). Também demorei para aprender a terminar uma conversa e saber pedir desculpas. Aqui nunca foi rotina. As discussões não tinham ponto final e muito menos tentativas de perdão. Simplesmente evaporavam no dia seguinte, como se nunca tivessem existido. Nada era esclarecido. Nada era dito.
Obviamente, como todo ser humano, já passei por conflitos sociais. Mas, quando alguém insistia em conversar até esclarecer tudo, meu instinto era não saber falar. Fingir que sequer havia acontecido. Amigos meus ficavam irritados, como se eu não fosse madura o suficiente (era o que parecia, visto de fora). Mas como demonstrar algo diferente, se esse foi o único método de argumentação que aprendi durante toda a vida? Uma vez li que “Crescer com pais emocionalmente imaturos é o mesmo que correr em uma esteira: você pode tentar, mas nunca sairá do lugar”. Acho que não existe nada mais real do que isso.
Você merece viver sua vida e ressignificar “casa”.
Chega um momento em que acreditamos que ajudar os outros é nosso único dever na Terra, que fomos feitos para suportar, consertar. Mas eu afirmo: não é. Você merece que sua vida seja sua. Você merece viver o amor de forma leve, relacionamentos (não necessariamente amorosos) de forma saudável. Tomar suas próprias decisões porque você quer, não para curar alguém. Você precisa se curar primeiro. Não somos responsáveis por sustentar o mundo nos ombros e você não precisa apagar incêndios que não começou ou costurar feridas que não abriu. Existe um espaço para a sua própria história, para os seus próprios sonhos, e ele não deve ser tomado apenas por sobrevivência. Na minha última sessão de terapia, minha psicóloga falou algo que me marcou profundamente: “Você ainda não teve a oportunidade de viver.” E acredito fielmente que, assim como eu, você também ainda não se deu permissão para viver plenamente. As crianças que fomos mereciam mais do que carregar o peso de um lar. E mais: precisamos aprender que viver não é apenas resistir. É também respirar. Ela te espera e eu também ; ).
obrigada por esse texto 🤍
sinto esse texto na alma quando eu, a filha caçula, é mais madura que ambos meus pais e minha irmã 7 anos mais velha que eu, tendo que aconselhar todo mundo como se fosse psicóloga e ser perfeita pra não adicionar mais um furacão dentro dessa casa que tá sempre prestes a desmoronar. acredito que é uma sensação que só nós filhos pilares (que sustentam a família pra tudo não desmoronar) conseguimos visualizar bem, e esse texto foi um exemplo ótimo de tudo isso